Trégua. Quando a vida cá fora recomeça lá dentro

Data de publicação
09 Setembro 2022
4:00

No Estabelecimento Prisional do Funchal, 12 reclusos participam desde março num projeto que lhes transmite competências artísticas, projetando o futuro regresso à liberdade.

Pense-se numa rotina de acordar, sair de casa, ir para o trabalho, voltar para casa, abraçar quem se ama. Pense-se, agora, em passar dias, anos, a acordar e ver pouco mais de uma cela exígua e muros altos que separam quem lá está de um mundo paralelo que não pára, mas ao qual não se pertence por um período temporal, porque a sentença ditou uma pena para cumprir.

Às terças e quintas-feiras, o acordar passou a ser diferente para 12 reclusos do Estabelecimento Prisional do Funchal (EPF). As portas gradeadas de cada cela são abertas pouco depois das 9 da manhã por um guarda prisional, que os acompanha pelos corredores calados, habitualmente monótonos e eventualmente sufocantes. A intensidade que emana da terra mexida do jardim, dá lugar ao aconchego do cheiro a pão acabado de sair do forno que se sente na chegada às Oficinas. Depois da padaria e da serralharia, a entrada para a azulejaria, onde os últimos degraus nos levam ao espaço no qual a mediadora cultural Catarina Claro e a artista Cristiana de Sousa, os rostos do projeto Trégua, assumem a forma humana de oportunidade, futuro, liberdade.

Começava, assim, uma manhã de atividades artísticas de reinserção social que a reportagem da Improvável acompanhou, acolhida como um amigo nos recebe em sua casa. “Vamos ficar famosos?”, questionavam-nos.

O conceito

Implementado na Cancela desde março até dezembro deste ano, o projeto Trégua, desenvolvido pela associação Casa Invisível, em parceria com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) e a Câmara Municipal do Funchal, envolve um longo e dinâmico processo de aprendizagem, que irá conduzir os participantes à criação e comercialização de uma marca coletiva. O processo, que envolve uma primeira fase de oficinas de desenho e criatividade, e uma segunda etapa de residências artísticas de ‘wearable art’, design gráfico, serigrafia, cerâmica e arte pública, irá levar à criação de uma linha de artigos, entre t-shirts, sacos de pano, crachás e demais peças de autor.

Estes artigos, realce-se, serão produzidos pelos reclusos após algumas formações conduzidas por vários artistas madeirenses, e têm como fim a venda em espaços comerciais na Região. Esta comercialização representará um retorno financeiro para os reclusos do EPF, o que os (re)aproximará da realidade do trabalho. A arte assume, aqui, o papel de veículo de integração social e laboral.

Uma manhã no EPF

Cristiana de Sousa, também conhecida pelo nome artístico Andorinha, conduziu, naquela terça-feira, a última de várias residências artísticas, dedicada à arte pública. Para além dos rostos que nos acolheram, era impossível não saltar à vista a vidraça enfeitada de ‘post-its’ coloridos com frases numeradas, ou palavras soltas. Desde “marisco” a “passear e poder dar bom dia aos meus filhos”. De “a revolta já não é tanta” ao “bolo do caco com manteiga”. “Um ser humano igual aos outros 7,7 biliões”, “não ser identificado por um número”, “comida da vovó”, “macarrão espedindo”, “o erro é o processo”.

Conforme nos explicou a dinamizadora da residência artística, este módulo surgiu na tentativa de estabelecer uma ponte entre o interior e o exterior, numa troca de mensagens que irá preencher, com palavras de quem está fora, um mural pintado dentro do EPF. No sentido inverso, naquela que é a primeira de três fases desta residência artística, os reclusos realizaram ‘stencils’ com as mensagens que escreveram para o exterior, mensagens essas que serão estampadas pelas ruas da ilha por Cristiana e Catarina.

“Dez anos sem ir ao mar”. A frase foi lida em voz alta por Catarina, gerando um silêncio cortante que se quebrou com Miguel, um dos reclusos, a admitir que aquilo é algo que se “reflete em todos” eles. Abel deu início ao desenho a lápis das palavras na folha de decalque, que mais tarde serviria para a sua transferência para o mural. Com a borracha, apagava e desenhava de novo, parecendo simples a tarefa de remediar um erro que se comete na vida. Poder voltar atrás, fazer melhor.

Oportunidade. Uma palavra que, curiosamente, não coube na área que cada um deles tinha para escrever a sua frase. “É por vezes uma coisa que falta. Brinca com a palavra, usa a criatividade”, sugeria Catarina.

Aproximar de fora para dentro

“Erros, toda a gente comete. Estas pessoas estão a cumprir um castigo por um crime que cometeram, mas amanhã a sua vida vai continuar lá fora”. Isso mesmo defende Catarina Claro, que sublinha que, para além de ali serem ensinadas competências que a população reclusa poderá utilizar, ou não, no futuro, o importante será a aproximação que se irá estabelecer entre quem está fora e quem está ou já esteve preso.

Terminadas as residências artísticas, o passo seguinte é a criação da marca Trégua. Após a produção autónoma, que tem início neste mês de setembro, numa primeira fase, estas peças poderão ser adquiridas online e no Viveiro de Lojas da CMF, situado na Zona Velha do Funchal, mas a organização espera estabelecer outras parcerias para que estes artigos, que são fruto do trabalho de todos os intervenientes na iniciativa, sejam disponibilizados no maior número de espaços possível. “Temos sentido muita curiosidade pelo projeto. A partir de dezembro, vamos precisar que a comunidade nos ajude neste trabalho, comprando as coisas. Ao comprar estas peças, vão estar a apoiar o trabalho que é feito por este grupo e o seu futuro”.

Aquando da visita da Improvável ao Estabelecimento Prisional do Funchal, os 12 participantes do projeto Trégua estavam já reduzidos a 10. Dois deles já estão “na liberdade”, como assim o descreveram os colegas, com um constante brilho nos olhos patrocinado pela ideia de um mundo de possibilidades que a vida terá para oferecer quando for tempo de recomeçar.

Se a oportunidade que tanto anseiam aparecer nas vidas de quem já deu por cumprido o seu castigo, os dois, e depois os restantes 10, estarão de volta a uma rotina de acordar, sair de casa, ir para o trabalho, voltar para casa, abraçar quem se ama.

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Sair da cela e encontrar um refúgio dos problemas

Apenas com aspetos positivos a apontar, Ricardo Cabral diz que o Trégua permitiu concretizar coisas que nunca antes imaginou. “Quando soube que iam desenvolver estas atividades com 12 pessoas, inscrevi-me logo”, começou por dizer, acrescentando que, à semelhança de Emanuel Petito, o facto de “distrair a cabeça” foi o maior estímulo para fazer parte desta equipa.

“Aqui passamos tempo com pessoas de fora, o que é bem melhor do que estar sempre fechado numa cela, ou estar no pátio com as mesmas pessoas”, confessa o recluso. “É claro que olhei para a máquina de coser e não sabia mexer naquilo, mas foi uma aprendizagem. Foi uma coisa que nunca tinha feito e aprendi”, orgulha-se, sendo que para além da costura, Ricardo Cabral sabe agora desenvolver peças em cerâmica, dá uns toques na costura e até desenha “um bocadinho”. “Vou aprendendo devagarinho”, acrescenta.

No seu sotaque que não esconde as raízes provenientes do arquipélago português vizinho, diz que estar nas atividades conduzidas por Catarina e Cristiana é um “distraimento” dos problemas que surgem: “A minha irmã faleceu e esta é também uma forma de não pensar no que aconteceu por uns momentos. É uma fuga, isto aqui”.

“Tenho o meu trabalho lá fora à minha espera, mas há muitas coisas que podemos levar daqui para a liberdade. Isto de poder ter uma loja de t-shirts, é algo que eu penso em concretizar na liberdade. Porque não? É uma coisa que pode dar certo. É um começo”, reconhece, esperançoso de que o fim do Trégua não aconteça já em dezembro, como está por agora previsto.

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“É fantástico acordares e saberes que o teu dia começa com um afazer”

Quando deu entrada no EPF, Emanuel Petito possuía o 6.º ano de escolaridade. Hoje, tem concluída uma licenciatura na área da Educação e um mestrado em Administração Educacional, formação que adquiriu enquanto cumpre a sua pena. No futuro, “aquando da liberdade”, ambiciona exercer num centro comunitário, junto de crianças e jovens em risco.

“Formar-me nisto e conseguir trabalhar nesta área tão pessoal para mim será uma forma de redenção e de devolver qualquer coisa à sociedade”, partilha o homem que garante, contudo, estar ciente de que “vão surgir imensos desafios e dificuldades”. “E sei que o que aprendo aqui vem nesse sentido: entre todas as portas que se fecharem, posso abrir uma janela através daquilo que tenho aprendido.”

Fazer o tempo passar mais rápido foi a primeira razão que o levou a inscrever-se nas atividades do Trégua, porque as horas vagas na prisão “são muitas”. “Já tinha experimentado atividades de cerâmica e costura, uma vez que quando começou a pandemia a própria instituição começou a montar uma linha de produção de máscaras para a população reclusa”, conta Petito à Improvável, orgulhando-se de ser “bastante multifacetado”.

Nos dias em que estão marcadas ações inseridas no projeto, Emanuel Petito acorda “com um sentido de propósito”. “É fantástico acordares e saberes que o teu dia começa com um afazer. Que tens algo para fazer, e não que o teu dia vai começar com aquela monotonia habitual”, justifica.

As origens

O Trégua nasce de uma ideia apresentada em 2017 ao Orçamento Participativo de Portugal. Na altura, uma mulher madeirense apresentou uma proposta para desenvolver um projeto relacionado com o bordado madeira no Estabelecimento Prisional do Funchal. A proposta foi vencedora, mas a sua impulsionadora acabou por falecer, não tendo havido a oportunidade de colocar a ideia em prática até ao ano passado. Em 2021, a autarquia funchalense convidou a Casa Invisível a apresentar uma nova proposta, reconhecendo o trabalho de mediação cultural e artística que a associação desenvolve há vários anos na Região. A associação não hesitou em dar resposta positiva ao convite, mesmo sem ter tido, até então, uma experiência semelhante. “Interessa-nos sempre aquilo que vai para além do óbvio e trabalhar com todos os públicos, principalmente aqueles que, de alguma maneira, são um pouco esquecidos, ou com quem ninguém quer trabalhar”, explica Catarina Claro. Com uma contraproposta, a Casa Invisível aperfeiçoou a ideia, tendo como ponto de partida a identidade e tradição madeirense para trabalhar práticas artísticas em contexto prisional.

Nunca antes se juntou esta quantidade de práticas artísticas num projeto desenvolvido em contexto prisional, sendo que a curiosidade foi a palavra que imperou no arranque do Trégua, refere Catarina Claro, que entende que o desenvolvimento da relação entre reclusos foi “como criar uma relação com qualquer pessoa”. “Quem vem trabalhar com eles não é mais. Não existe eles e nós, somos todos nós. Partindo daí, as coisas acontecem com muita naturalidade”, orgulha-se a diretora executiva, sendo esta considerada “a grande magia deste Trégua”.

O projeto teve início em março e decorre até dezembro, sendo comum a vontade de que ele tenha continuidade. “Estamos a tentar arranjar financiamento, e para isso é muito importante que as pessoas percebam que isto é uma responsabilidade de todos, e que todos podemos contribuir de alguma forma. Seja seguindo o projeto nas redes sociais, seja dando uma oportunidade às pessoas que saem daqui e precisam de um trabalho”, diz Cristiana de Sousa.

A falta de oportunidade, o constante bater com a porta com o qual os reclusos se confrontam quando são devolvidos à sociedade, é, por si, um grande fator de reincidência. “São raras as pessoas e empresas que lhes dão essa oportunidade”, lamenta. É precisamente para estabelecer esta ponte entre a prisão e o mundo lá fora que o Trégua existe.

O conceito e equipa

É uma oportunidade para pensar a reclusão com os olhos postos no futuro, tendo a tradição e a sua comum marginalização por parte da população como ponto de partida. A relação entre o folclore – enquanto representação da identidade da comunidade - e a sociedade, surge num paralelismo com a relação entre os reclusos e quem nunca esteve dentro de muros. Em ambas as situações, a discriminação acontece, e é a essas relações antitéticas que esta iniciativa ambiciona dar Trégua.

A direção executiva do projeto é da mediadora cultural Catarina Claro, estando a direção artística a cargo da artista plástica Cristiana de Sousa (aka Andorinha). Patrícia Pinto (‘wearable art’), Rosa la Peligrosa (design gráfico), Pascal Errante (serigrafia), Miguel Ramos (cerâmica) e Andorinha (arte pública) foram os artistas que partilharam os seus conhecimentos com estas 12 pessoas em contexto de reclusão.