Já passava das duas da tarde quando abandonamos a freguesia do Curral das Freiras, e o tempo, que estava forrado, decidiu abrir-se para apadrinhar a nossa viagem. Não havia outra opção senão retomar à Estrada Regional 107, percorrendo o mesmo itinerário. É interessante contrastar o sentimento de satisfação do regresso com a ansiedade da ida. No carro, falávamos sobre quantas vezes teríamos visitado o Curral das Freiras, revoltados por serem tão poucas vezes prometemos, ali, que iríamos pelo menos duas vezes por ano ao Curral, para o resto das nossas vidas. Promessa que tencionamos cumprir. Entre conversas, falávamos sobre as nossas vivências e de onde provinham os nossos ancestrais, ao que concluímos que o Funchal é uma pequena parte da nossa vida, e talvez nos reencontremos a nós próprios nesta odisseia. Talvez uma conversa um pouco profunda para quem vai a caminho do Estreito de Câmara de Lobos, a Terra do Vinho e da Espetada, por isso e até para equilibrar o entusiasmo e a ansiedade, decidimos aumentar o volume da nossa playlist para a viagem, que vai alternando com a 88.8 JMFM. Abrirmos os vidros e fizemos uma serenata de cana rachada aos eucaliptos. De modo a garantir que nem um pouco da silhueta do anfiteatro da capital voltávamos a vislumbrar, no fim da Estrada da Eira do Serrado, virámos imediatamente à direita no Caminho Velho da Chamorra. Em seguida no fim da rua, fomos pelo Caminho das Preces, de duplo sentido, fazendo preces de que não viesse um carro “todo lançado” na curva. Continuamos a descer, passando o Caminho de Santa Quitéria, e depois lá fomos, Madeira Shopping abaixo, sem medo. Entramos na Estrada de Santa Rita, sempre com os olhos fixados a Oeste, de onde cresce uma floresta sem fim de bananeiras do mar à montanha. Ao passar as obras do novo Hospital, imaginámos o futuro desta zona, e refletimos sobre o quão São Martinho mudou nos últimos 40 anos.
Já na Estrada da Vitória em direção a Câmara de Lobos, passamos por baixo do viaduto da Via Rápida, cercados pelo bananal começámos a mandar palpites do número de bananas que dali surgiriam, dez mil? Cinquenta mil? Cem mil? Um milhão? Infinitas? Sabemos lá! O que se sabe é que a banana é pequenina, saborosa, é nossa, e para a Dona Dolores é a segunda melhor exportação da Madeira. Já apanhando o fim da Estrada Monumental, fomos acompanhando a última etapa da promenade que liga a Praia Formosa a Câmara de Lobos, gritando “Força” a um grupo de pessoas que estavam a fazer a sua corrida. Não sabemos se ouviram ou não, mas valeu a intenção, sendo que é fácil falar de fora (ainda por cima de carro). Ao começar a Estrada João Gonçalves Zarco, a silhueta que nos é apresentada é indescritível. Ao fundo o Cabo Girão que se funde com o Atlântico de forma vertiginosa, e simultaneamente, o monte esverdeado que aconchega a baía de Câmara de Lobos, repleta de barquinhos. Não há hipótese, temos de ir ao centro! Estacionámos o carro, demos uma moedinha ao senhor que jurou pelo Presidente da República que ninguém multava aquele carro, e, sem desconfiar da promessa, pagámos o parquímetro, não vá uma multa parar à 31 de Janeiro.
A vila de Câmara de Lobos é um sonho pintado de várias cores, e é engraçado pensar que tanta gente deseje um dia conhecer a costa amalfitana, quando mesmo aqui, na nossa ilha, encontramos um espécime perfeito dessa aura. Deambulamos um pouco pelo centro, fomos até ao cais e inspiramos aquele mar, aquela enseada, tirando uma foto da baía para mais tarde nos recordarmos daquele dia. Ao regressar ao centro, junto à igreja vemos um grupo de senhores a jogar às cartas bastante animados, e logo a seguir, dois senhores a prepararem um daqueles barquinhos de pesca e decidimos travar conversa. Um deles contou-nos que os naturais desta vila eram apelidados de “Xavelhas” devido ao nome daquelas barquinhas de duas proas, os xavelhas. O outro senhor, o Manuel, pescador desde que se lembra, confidenciou-nos os perigos daquela vida, e falou-nos sobre a ânsia em partir para o mar, a felicidade no regresso, sempre que avista a baía, mas também da tristeza, quando voltam sem peixe. “A vida da espada é muito traiçoeira, é uma vida solitária” – confessou, acrescentando que “a vida do mar já está no sangue de quem ali nasce”. São histórias como esta que nos mostram as lutas e o esforço do povo madeirense, e isto motiva-nos a continuar a nossa viagem de descoberta. Agradecemos muito aos senhores pela sua partilha, e seguimos o nosso caminho.
A, agora cidade, de Câmara de Lobos, assim se chama devido à quantidade de lobos-marinhos que ali se encontravam aquando da redescoberta da Ilha da Madeira. Alegadamente, foi aqui que se originou a primeira população madeirense, onde se enraizou João Gonçalves Zarco, e entendemos que assim o tenha sido. Falamos de uma terra cujas condições climatéricas, a boa exposição solar e a proteção contra os ventos fortes, proporcionavam um abrigo exemplar. “Gonçalves Zarco estaria orgulhoso não achas?” - perguntou-me o meu colega. Ao que lhe respondi: “Então não? Então se ele soubesse da Poncha!”. Por falar nessa bebida, de que tanto se comenta por esse mundo fora, pelo que investigamos, o nome poderá ter tido influência inglesa e da bebida “Punch”, esta, introduzida pela cultura indiana na Grã-Bretanha no século XVII, mas cuja ligação com a nossa Poncha resume-se apenas ao seu nome. Também se diz que na época dos descobrimentos se juntava aguardente ao limão a fim de preservá-lo, e talvez, combinando com açúcar ou mel de abelha, eventualmente, poderia algum marinheiro ter chegado à receita, mas não há base de sustento. O que ficará para a História é que a Poncha é madeirense, não é sumo como os estrangeiros pensam, era usada para proteger os pescadores de Câmara de Lobos das gripes e outras maleitas, e hoje, não há sítio na Madeira onde não a façam. Com tanto falar em Poncha e em lobos, não nos resta outra opção senão ir beber uma, mesmo em frente de onde já estávamos, na Taberna dos Lobos! Assim foi, pedimos duas pescadores, feitas na hora, que é assim que em bom madeirense se pede! Ficámos encantados, e falámos com o proprietário o Sr. João Figueira e com a menina Cristina que nos contou um pouco sobre os pratos típicos do restaurante. Espada com Banana, Bife de Atum, Ventrecha de Atum, Mista de Peixe do dia, com peixes variados, sempre frescos, recebidos diariamente, e ainda a Fragateira e a Feijoada de Peixe e Marisco. Tudo parecia muito apetitoso, e decidimos provar um pouco do que nos chegava à mesa - sem palavras! O restaurante tem ainda um terraço coberto com uma vista mar deliciosa, que acompanhava os pratos frescos que iam enchendo a nossa pança. Parece que estamos num daqueles filmes europeus que ganham palmas de Ouro em Cannes!
Dali, e já que estávamos na onda do peixe e marisco, fomos a outro que nos foi recomendado, a Vila do Peixe, um espaço emblemático de Câmara de Lobos, e já ao entrar compreendemos o porquê. Fomos logo brindados por uma vista sublime sobre a baía, ainda por cima com um belo sol a banhar-nos, decidimos sentar-nos numa mesa e desfrutámos daquela tela. O Sr. Alberto Silva, o proprietário aproximou-se de nós e aproveitamos para conhecer melhor este projeto. Convidou-nos a conhecer a sala interior, onde podemos conferir uma enorme quantidade de peixes, fresquíssimos a sorrir para nós. Como também é proprietário da Vila da Carne, mesmo ao lado, decidiram dar-nos a experimentar um pouco dos dois restaurantes. De carne, comemos um pouco da Mendinha e o Bife de Pobre (do Acém redondo), e ainda vimos servirem-se muitas espetadas e nacos de carne, que pareciam derreter-se aos olhos dos turistas, que lá se encontravam. Relativos à Vila do Peixe, trouxeram-nos alguns mariscos selecionados, com direito a Lapas, Caramujo e o Polvo da casa, e ainda o Atum Rabilho, um pouco de Cavala e a Espada, que não podia faltar. Estava tudo ótimo, e mais uma vez com uma vista daquelas, não podemos deixar de aconselhar-vos a vir. A verdade, é que só conseguíamos mesmo experimentar um bocadinho de tudo, porque senão não haveria estômago para as espetadas do Estreito de Câmara de Lobos. Uma certeza ficou, a vila de Câmara de Lobos é o sítio ideal para comer bom peixe e bom marisco, mas também para os fãs de Carne, e para além disso, é uma vila romântica cheia de histórias. Um paraíso dentro de um paraíso - não admira que Churchill a tivesse eternizado nas suas pinturas.
Já no carro, sintonizamos a 88.8 e nem por acaso, está a tocar o “I’ll walk 500 miles”, a música com o ritmo certo para começarmos a subida para o Estreito. Vamos à Espetada! Seguimos a Avenida Nova Cidade, passando a rotunda e a subir, continuamos agora, pela Rua Frei Pedro da Guarda, sempre juntinhos à Ribeira do Vigário. Primeira saída, curva longa, e vemos o mural em homenagem aos bombeiros, do artista madeirense “Rigo”, chegamos a uma bifurcação, tomamos a nossa esquerda, retornando à Estrada João Gonçalves Zarco e aqui vamos nós! Rapidamente já estamos na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos. Enquanto isto, é bonito olhar de longe para Este, e depois de uma curva encostámos o carro para tirar uma foto – sentimos o momento, e assim o fizemos. Depois de uma curva apertada virámos na Rua Francisco Ferreira Ferraz pois vimos uma placa com a direção para o Mercado Municipal do Estreito, que queríamos visitar. Passámos por uma espécie de túnel debaixo de um viaduto e fomos dar a uma rotunda. Aí encontrámos o Palheiro da Adega – mesmo a tempo para matar as securas! Pelo Palheiro entrámos e falamos com o Afonso, que nos informou da vasta gama de bebidas que ali podíamos experimentar. Pelo que apuramos, mais de 20 variedades de Nikitas, vários tipos de Poncha, inclusive de ananás, mais famosa no Verão, para além destas, as Caipirinhas e Mojitos de diferentes sabores e texturas. Após ouvir as sugestões, pedimos um clássico, a Poncha Regional e uma Nikita, pois esquecemo-nos de provar em Câmara de Lobos. A Poncha estava mesmo boa e a Nikita de Yuzu, um cítrico japonês, surpreendeu-nos e muito, recordando-nos um pouco da tangerina ou laranja e até um toque a limão. A verdade é que estava tudo perfeito e vale a pena cá vir experimentar as muitas outras bebidas que têm para si. Subimos a um pequeno terraço para contemplar novamente, uma vista incrível, e ainda fizemos festinhas a um gatinho que ali descansava pacificamente - às tantas estava a ressacar das Ponchas! Aproveitamos que estavam na mesa ao lado pessoas do Estreito e perguntamos onde ir a seguir, ao que nos responderam: “Não precisa de pegar no carro, suba a pé e experimente a espetada da Adega da Quinta!”
Assim o fizemos, subimos “a la pata” e entramos num portão de quinta enorme, onde se lia “Adega da Quinta”, indo dar a um jardim com uma panorâmica de sonho. Continuamos a andar e apercebemo-nos de que existe um espaço amplo quer interior, quer exterior, e decidimos sentar-nos na rua. O proprietário, o simpático Sr. Rúben, surpreendeu-nos, e como sempre, explicamos-lhe a nossa missão e mais uma vez, não conseguimos resistir ao convite de experimentar a sua espetada. Mas que carne saborosa! Mais aquela vista! Esqueçam! Cada vez estamos mais felizes com esta nossa jornada (e a barriga ainda mais feliz). Ali aproveitávamos uma das melhores vistas do Estreito de Câmara de Lobos, e decidimos simplesmente desfrutar daquela carne e da boa conversa, antes de continuar a nossa viagem pelo Estreito. A vida é feita destes momentos!
Para semana continuamos a contar-lhe o resto das nossas aventuras pelo Estreito da Câmara de Lobos, mas podemos já revelar-vos de que vamos até à (bem guardada) Fajã das Galinhas e visitaremos os pontos mais emblemáticos do centro da freguesia. Claramente, havemos de comer e beber em mais sítios, para depois contar-vos tudo sobre a nossa experiência. Cintos apertados? Arranca Carlinhos em direção à Fajã das Galinhas!
Siga JM! Até para a semana!